Apanhei o comboio que ligava Munchenhausen a Bocksbergforten (...) Depois do almoço Chiara permitiu-se acompanhar-me à minha cabine, nenhum de nós dois era dado a sestas e o seu irmão não viu inconveniente em estarmos os dois sós. Mal se sentou segredou-me sorridente que tinha roubado umas das colheres de prata da sobremesa. Mostrou-ma escondida no seu bolso. Fingi não achar piada mas nem ela nem eu acreditámos na minha tentativa de sermão (...) Passávamos entretanto pela montanha de Viberg (...) A paisagem que discorria pela janela era apenas marcada pela flutuação das linhas que demarcavam o espaço e permitiam distinguir o céu da terra, uma montanha da outra. Nada além de um conhecimento prévio poderia fazer supor que o fundo branco de toda aquela paisagem não seria um plano homogéneo. Chiara tinha acabado por adormecer lentamente encostada ao meu ombro. Não me queria mexer. Não queria fazer com que assim terminasse aquele contacto físico, ou fazer com que fossemos ambos confrontados com o inusitado da situação. Tal acabou por não ser uma questão já que a entrada do Sr. Pitt fez com que a acordasse sem pensar na sua posição. (...) Giovanni jogou a sua carta e pousou o olhar no meu ombro, reparei que algo do rouge de Chiara tinha manchado o meu fato.
Hans-Joakim Skollenberg, Samarcanda, Assirio & Alvim

John Knowles entrou na sala e os restantes polícias afastaram-se cama king size onde o corpo arqueado da jovem franzina jazia no cimo de diversas camadas de roupa ensanguentada. Longe de o impressionar o cenário não era dos mais dantescos. Já tinha visto manchas maiores em locais menos prováveis (...)
Como de costume, ficou no laboratório muito depois dos outros se terem ido embora (...) [John] espalhou todos os lençóis e cobertores no chão. Juntos ocupavam a totalidade da sala. Verificou a fronteira das manchas e procurou identificar as pregas que permitiriam juntar o puzzle do jogo de cama e recriar a posição original do cadáver. Quando terminou verificou que tinha sido o sangue pressionado pelo corpo a imprimir o contorno deste nas telas (...) Apagou as luzes e subiu para a cadeira. Os infravermelhos revelavam não só o plasma já entranhado e coagulado no tecido e a gordura humana de um número desconhecido de pessoas mas também uma profusão de salpicos demasiado distribuída e numerosa para ter origem em qualquer secreção humana.
Steve Botnick, C.S.I. Las Vegas: Os Melhores Casos, Sic Livros

(...) Como não conseguia dormir acabei por ir bater à porta de casa do meu pai. Recebeu-me surpreso e sentámo-nos no sofá. Falou-me de alguns livros (...) e sugeriu-me ir ao jardim zoológico. Custou-me a conduzir já que a sonolência do ópio era potenciada pelo ronronar do carro. (...) O tigre roçava o vidro e estava a 15 centímetros da minha cara. Tentei estabelecer algum tipo de contacto visual mas os movimentos do tigre que o faziam ali passar eram constantes e recorrentes, pouco motivados pela nossa presença. O pai afastou-se para ver alguns dos quadrúpedes da sua infância e fiquei ali a olhar para as manchas dos três animais deitados ao sol. Das informações frequentemente expostas nestes sítios ficámos a saber sempre as mesmas duas ou três parvoíces: os cornos dos rinocerontes são feitos de pêlos, os macacos são quase iguais a nós e os tigres nunca têm as manchas iguais. Nessa especificidade felina seria eventualmente possível um Ching Tigrês se conseguíssemos pôr uns 70 e tal tigres no mesmo espaço. Um qualquer sultão terá provavelmente feito algo assim. Prometi-me a mim mesmo organizar tal infra-estrutura caso o meu futuro financeiro o permitisse. Teria uma sala gigante com setenta tigres, um chinês teria previamente atribuído um trigrama a cada um. Uma ou duas vezes por dia bradaria as minha inquietudes aos céus e lançaria algo assim impactante como um pavão vivo aos tigres e os primeiros a devorá-lo revelariam as maquinâncias do meu destino.
Flavio Chini, O Sermão de Sta Apolónia aos Leões, Ed. Antipáticas

O pequeno livro que Ramón tinha deixado esquecido dentro do saco da ginástica era sobre Numerologia. Laura ficou intrigada. Normalmente tinha pouco tempo para misticismos e coisas do género, não condizia com o seu perfil de mulher a braços com a contemporaneidade recorrer a estes métodos de garota incerta. Mas a curiosidade foi mais forte e uns minutos depois Laura tinha uma folha cheia de rabiscos na sua mesa da cozinha. O seu número de nascimento era o dois: A dualidade e a feminilidade, se o um é o deus bom o dois é o combate entre o bem e o mal, a vagina que se adapta à recepção do pénis. Estava certo, afinal não tinha ela bisbilhotado as coisas do seu novo amante? Investigou o número de Ramón e descobriu o 7, considerado um dos números mais sagrados e mágicos da tradição Judaico-Cristã, não tinha deus descansado no sétimo dia? (...) Ramon despiu o casaco que usava para andar de mota e pegou nela ao colo. “Tu és um sete, eu sou um dois” disse-lhe Laura, atirou-a para cima da cama reparando no seu livro aberto no balcão corrido da cozinha.
Federica Montseny, Há uma luz que nunca se apaga, Pergaminho Luhuna Carvalho, Janeiro de 2009

Luhuna Carvalho, Janeiro de 2009